quinta-feira, 29 de abril de 2010

O que faço pelas noites sem fim?

Após o primeiro dia de um simpósio, penso em certas bases neurais que deveriam ser modificadas. Quem dera os sentimentos cedessem às duras apreciações da Razão! Me tornaria, assim, um digno discípulo de Ovídio, o poeta romano que presunçosamente se julgava mestre na Arte do Amor. Mesmo ele, porém, precavido, prestava suas homenagens à ela, Vênus, a Deusa daquilo que todos temem e desejam. Assim também procedo, mas à maneira de Lucrécio:

"É por ti, ó Vênus, que todas as espécies vivas são concebidas e, uma vez
chegadas à existência, vêem a luz do sol; diante de ti, ó Deusa, à tua
aproximação, fogem os ventos, fogem as nuvens; sob os teus passos a terra
fecunda estende seus doces tapetes de flores, as ondas do mar te sorriem, e, por
ti, no céu apaziguado, espalham-se e resplendem as luzes..."

E, em mais uma noite dedicada à contemplação da moça amada, descubro, entre os livros, alguém que também não dorme:

"Você pergunta o que penso
pela longa noite?
Passo-a ouvindo
a chuva forte
batendo nas janelas."

(Izumi Shibiku)

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Dois sonetos

À guisa de um prefácio tardio, um prelúdio esquecido... Ou se preferirem, um aviso, justificativa, talvez um pedido de desculpas pelas ladainhas que vieram e pelas que ainda virão: eis o que, fatigado, procurei em meu exemplar dos Sonetos de Bocage, roubado da biblioteca paterna e ainda empoeirado. Não selecionei um único, mas um par: trata-se de minha estratégia literária para enganar a solidão...

"Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-sas com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores.

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores.

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência".

"Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza, e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça tristeza envenenados;

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados.

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania.

Desculpa tendes, se valeis tão pouco;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco."

(Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage)

terça-feira, 27 de abril de 2010

Cachorro Velho

Faz frio. Não lá fora, mas aqui dentro. Eu deveria me comportar, e talvez ganhasse um osso por isso. Mas insisto viver as coisas e os sentimentos ingênuos, intensos e precipitados. E ganho migalhas, restos que não me interessam. Paga-se um alto preço por escolher não viver noites artificiais. Não precisei subir ao Monte Carmelo para viver, e agora mesmo, a Noite Escura da Minha Alma. Mas espere. Não dizem os cristãos e talvez outros também, ou todos, que cachorros não têm alma? Não sei, não pode ser, mas se for assim... O que me dói?

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Parti(n)do...

Desejos de partir, de sempre partir. Partido, hoje este bardo não canta, e não há luar. Lembrei-me de Bashô (1644-1694), um poeta de sonhos, e de sua Trilha Estreita ao Confim:

"Dias e noites vagueiam pela eternidade. Assim são os anos que vêm e vão como
viajantes que lançam os barcos através dos mares ou cavalgam pela terra. Muitos
foram os ancestrais que sucumbiram pela estrada. Também tenho sido tentado há
muito pela nuvemovente ventania, tomado por um grande desejo de sempre partir".

Ao fundo, ouço o dolorido Quatuor pour la fin du temps (Quarteto para o Fim dos Tempos), do compositor francês Olivier Messiaen(1908-1992), também um sonhador que ousava acreditar que eram os pássaros os maiores compositores, e a música prolonga a noite. Ao Confim.